Sobre autocrítica e perspectivas
A Coletiva Marcha das Vadias de São Paulo se reuniu nos últimos dias 15 e 16 de Agosto para um final de semana de imersão, autoconhecimento e autocrítica.
Nosso cotidiano é corrido e estressante, típico de uma grande cidade como São Paulo e de uma sociedade capitalista, imediatista e tecnológica. Além disso, durante o primeiro semestre deste ano, tivemos que lidar com os preparativos e repercussões do nosso ato anual (a marcha organizada pela coletiva, que este ano ocorreu no dia 30 de Maio) e com a entrada e saída de algumas membras (por diversos motivos, sendo um deles a maternidade).
Diante disso, sentimos a necessidade de nos reunirmos para nos conhecer melhor, alinhar posicionamentos da Coletiva, avaliar nossa atuação e forma de organização e formar perspectivas para o futuro.
Nos propusemos a discutir diversos temas, mas, por falta de tempo, não foi possível debater todos eles. Além disso, nem sempre conseguimos chegar a conclusões sobre todos os tópicos. Nossos debates obviamente não esgotam as discussões sobre os temas e nossas conclusões podem ser sempre revisitadas e alteradas, conforme formos aprendendo com nossas vivências.
Nas conversas, constatamos mais uma vez a importância de se interseccionar o combate às opressões cotidianas e estruturais da nossa sociedade. E, para isso, é preciso conhecer as origens de tais opressões e entender como elas atuam.
Discutindo sobre bi e lesbofobia, chegamos ao entendimento de que a homofobia, termo normalmente usado para remeter ao preconceito em relação aos homens gays, é diferente do perpetrado contra mulheres lésbicas e bissexuais. Alguns setores do movimento feminista entendem que não existe bifobia, mas que mulheres bissexuais sofrem resquícios de lesbofobia quando estão com outra mulher. No entanto, esse não é nosso posicionamento.
Assim como a lesbofobia, a bifobia é um preconceito estrutural. As mulheres bissexuais não sofrem discriminação apenas por estarem em um relacionamento homossexual (violência lesbofóbica) ou heterossexual (machismo). Além de serem tratadas como confusas, indecisas e promíscuas, em todo início e término de relacionamento pessoas bissexuais têm que reafirmar sua orientação sexual, que muitas vezes é questionada.
A bifobia decorre da existência de um padrão de monossexualidade que impera socialmente, e se expressa principalmente no círculo de convivência das pessoas, já que a orientação sexual bi precisa estar contextualizada para a discriminação começar. Nisso se dá a crueldade da bifobia, pois o preconceito se concretiza justamente nos espaços e grupos em que a pessoa bissexual tem convivência íntima ou sentiu segurança para expressar sua sexualidade.
Abordamos também a questão da transexualidade/transgeneridade e reafirmamos nosso apoio para que as pessoas expressem seu gênero ou a ausência dele sem sofrer discriminação. Acreditamos que os debates sobre feminismo e causa trans se complementam, pois discutir transgeneridade amplia o debate de gênero dentro do feminismo, tornando-o mais rico, enquanto este ajuda a “libertar” a questão T dos estereótipos de gênero.
Acreditamos na necessidade de interseccionar não apenas a questão trans, mas também de raça. O racismo é ainda latente em nossa sociedade, o que faz com que mulheres brancas, negras e de outras etnias sofram com o machismo de formas diferentes.
A Coletiva já foi questionada sobre como o feminismo da Marcha das Vadias contempla a mulher negra. Isso porque o termo “vadia” e a estética adotada por muitas das participantes nos atos, usados para escancarar a cultura do estupro e afrontar aqueles que culpabilizam a vítima pela violência sofrida, pretendem demonstrar que a mulher deve ser livre para expor sua sexualidade sem ser julgada ou hostilizada por isso.
No entanto, dado o processo histórico-racial distinto entre as diferentes etnias e a hipersexualização da mulher negra, o processo de apropriação e “ressignificação” da palavra não seria possível a mulheres negras.
Ocorre que tanto a Coletiva paulistana como as demais Marchas das Vadias do Brasil e do mundo são movimentos orgânicos que surgiram espontaneamente em resposta a um episódio específico que, verificou-se, ocorre de forma recorrente com mulheres de todos os cantos. Desde então, esta Coletiva amadureceu em seus questionamentos, passando a abordar temas diversos dentro do universo de luta feminista e procurando abarcar as diferentes perspectivas que a heterogeneidade de mulheres e agendas exige.
Acreditamos, por exemplo, que quando, para tratar do tema do aborto, usamos como principal argumento a questão da saúde pública ao invés da escolha da mulher sobre o próprio corpo, estamos preocupadas em tratar a questão de uma perspectiva que interseccione raça e classe (pois, por motivos históricos e econômicos, mulheres negras e pobres estão mais sujeitas a abortos inseguros e suas sequelas, inclusive a morte).
Por tudo o que foi dito, concluímos que é importante apoiar grupos feministas que tratam de opressões específicas, como a lesbo/bifobia, a transfobia e o racismo para dar visibilidade a essas diferentes formas de opressão. Da mesma forma, na atuação da Coletiva, é necessário problematizar e interseccionar sempre para abordar adequadamente as opressões sofridas, de forma heterogênea e não simplista. Entendemos que, por mais diversas que possam ser as expressões do gênero feminino, são nossas opressões comuns que nos unem e é para nos libertar a todas de tais opressões que lutamos.
Entre essas diversas formas de opressão, temos também os padrões de beleza a que são submetidos nossos corpos. O atual padrão de beleza, criado culturalmente e reforçado através de estímulos positivos e negativos, é o corpo magro, sem manchas, sem marcas, sem pelos: um corpo que só existe com o auxílio do Photoshop.
Enquanto a mídia trata de destruir a autoestima de quem não se encaixa nos padrões, a indústria da moda deixa de produzir tamanhos maiores, obrigando as pessoas a emagrecer para usar suas roupas e, ao mesmo tempo, passando a mensagem de que só as pessoas “legais” (magras) usam peças daquela marca, que se torna objeto de desejo por transmitir determinado status. Porém, só a influência da mídia não é suficiente, é preciso que esses padrões sejam incorporados e naturalizados, para que a pressão venha do ciclo social também.
A beleza e a magreza estão associadas ao que é ser mulher, aos padrões de feminilidade. A importância da beleza para a mulher é muito maior que para o homem, pois o nosso valor é estabelecido socialmente através da imagem, enquanto homens são valorizados por outros fatores (ainda que eventualmente opressores de formas diferentes), como inteligência, competência, riqueza, poder.
Também debatemos sobre a forte relação entre padrão de beleza e consumo e sobre como os padrões de corpo e roupa são alterados com grande frequência para garantir o consumo de diversos produtos e o lucro das empresas, fatores fundamentais do sistema capitalista.
Outro elemento essencial do capitalismo é a posse, base do relacionamento monogâmico que predomina em nossa sociedade. Considera-se que o amor romântico monogâmico é estruturalmente construído na não autonomia das pessoas, na insegurança, no controle da sexualidade da mulher (que é traduzido socialmente como ‘fidelidade’), na objetificação do outro e consequente sentimento de posse, no isolamento social (sem o qual a violência doméstica fica quase impossibilitada de ocorrer), na projeção da felicidade própria no encontro com o outro e na exclusividade do amor para apenas uma pessoa. Por isso, entendemos que é necessário que o feminismo se ocupe de discutir outras formas de amor e assim o fizemos.
O amor livre engloba a ideia de romper com o padrão de relacionamento construído pela sociedade patriarcal e pautado pelo machismo e pela hierarquia. A intenção é negar todos os padrões sociais que foram impostos para que as pessoas se relacionem afetiva e sexualmente. O amor livre abre mão da instituição do casamento, seja religioso ou civil, assim como da objetificação do outro (que recai de múltiplas formas violentas sobre a mulher), e de símbolos e comportamentos (como o ciúme) que representam socialmente o padrão monogâmico romântico de relacionamento.
O poliamor se aproxima de várias maneiras do amor livre, pois se pauta pela construção de relacionamentos horizontais e acredita que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E se estabelecendo múltiplos relacionamentos, não deve haver hierarquia entre eles.
O poliamor, assim como o amor livre, reconhece que o ideal de amor romântico é uma instituição basilar para a sociedade patriarcal, e que o machismo inerente a este tipo de relação precisa ser constantemente vigiado para não ser reproduzido nas relações poliamorosas, considerando que ao homem sempre foi permitido ter vários relacionamentos. Da mesma forma, os homens são estimulados a serem seguros e a desenvolverem sua autonomia, de maneira que possa possuir e dominar a mulher, a quem a sociedade fragiliza e ataca constantemente a autoestima.
Dessa forma, o processo de desconstrução que a mulher se coloca ao se inserir na rede comunitária de relações poliamorosas é significativamente intenso. As relações poliamorosas devem se basear no diálogo permanente e afetivamente responsável.
Ainda relacionando o capitalismo e suas opressões com o feminismo, passamos a nos questionar se o patriarcado é estruturante do sistema de produção capitalista. Sabemos que é possível existir patriarcado sem capitalismo, e que o capitalismo se apoia no patriarcado, mas é possível acabar com o machismo dentro de uma sociedade capitalista? O sistema permitiria as divisões de riquezas/poder/meios de produção necessárias para isso?
Dessa forma, nos questionamos se é possível fazer feminismo sem combater o capitalismo e as ideias liberais que o sustentam. E, ainda, se é desejável fazer feminismo sem combater um sistema que, ainda que não fosse machista, inevitavelmente, a nosso ver, reproduz e se sustenta nas desigualdades.
Quando as pessoas identificam a Marcha das Vadias com o feminismo liberal, fazem isso por causa da escolha do movimento em tratar da autonomia da mulher e de sua capacidade/possibilidade de escolha. A autonomia, o indivíduo como unidade básica do pensamento são conceitos da teoria liberal. Já a unidade familiar, que é uma estrutura patriarcal, se colocou como base para o surgimento do modelo capitalista. É preciso ressaltar que teoria liberal não é sinônimo de liberalismo econômico.
O feminismo liberal começou reivindicando a participação da mulher no âmbito público. Por um lado, o mote “o pessoal é político” é de difícil conciliação com a teoria liberal, que defende a mínima interferência do Estado e não entende (pelo menos na teoria clássica) a esfera doméstica como âmbito social. Por outro lado, cabe questionar se o feminismo atual conseguiria basear suas teorias sem reivindicar autonomia para a mulher.
Acreditamos que, atualmente, a reivindicação de liberdade e autonomia para a mulher, como indivíduo, ainda se faz necessária. A relação entre público e privado é a intersecção entre patriarcalismo, liberalismo e capitalismo. É o espaço da cultura e da natureza, onde a cultura machista é naturalizada para manter o poder dos homens e seu domínio sobre os meios de produção e capital. Por isso, o feminismo não deve se furtar de atuar nessa fenda (como a MdV-SP menciona em sua carta de princípios, atuar no âmbito da cultura), de questionar a marginalização da esfera doméstica.
Não chegamos a uma conclusão sobre o patriarcado e o machismo serem estruturantes do capitalismo. Porém, seja por acreditar que não é possível destruir o machismo sem acabar com o capitalismo; seja por acreditar que, mesmo independentes, ambos são sistemas opressores que merecem ser combatidos, a Coletiva se identifica como anticapitalista.
Por fim, passamos a debater sobre estrutura e forma de organização da Coletiva, em especial para deliberar se nossas decisões devem ser tomadas com base no consenso ou na votação, questão que tem nos acompanhado durante anos e para a qual ainda não temos uma resposta.
Partindo do texto “Tirania das Organizações sem Estrutura”, de Jo Freeman, escrito na década de 1970, estudamos sobre como organizações sem estrutura ou liderança, formato escolhido como reação à sociedade superestruturada em que vivemos, acabam por criar hierarquias e facções não oficiais, as quais não podem ser controladas. Esse tipo de organização cumpre o propósito inicial de conscientização e debate, mas impossibilita qualquer tipo de ação mais concreta ou em maior escala.
Dessa forma, na falta de objetivos concretos maiores a serem alcançados, as mulheres membras de tais grupos passam a atuar no controle umas das outras. Outra consequência é que grupos menores se tornam suscetíveis à influência indireta de outras organizações, maiores e mais bem estruturadas, as quais darão o direcionamento das atividades em maior escala realizadas pelo movimento feminista.
Ainda que tenha sido escrito décadas atrás, o texto permanece atual, pois identificamos que muitas das situações relatadas no estudo se repetem no movimento feminista contemporâneo. Apesar disso, o artigo também oferece dicas de soluções que, embora mantenham o espírito voluntário, sororário e de respeito aos limites de atuação das outras, conferem certa estrutura e organização para uma melhor atuação dos grupos feministas.
Acreditamos na necessidade de articulação do movimento feminista para tornar sua mensagem mais difundida e conseguir realizações concretas, seja no âmbito da cultura ou dos direitos, que possibilitem uma melhoria efetiva na vida de mulheres.
Em uma sociedade líquida, na qual os interesses fluem, ascendem e desaparecem rapidamente, devemos aproveitar o momento presente em que o feminismo está em destaque na sociedade, e as forças contrárias aos avanços de direito se fortalecem, para nos aproximar, organizar e lutar para alcançar nossos objetivos comuns.
Feministas do mundo, uni-vos.