Carta de Princípios

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A COLETIVA

 

Somos uma coletiva feminista, de esquerda, apartidária, autogerida e organizada horizontalmente. A coletiva, sediada na capital paulista, é composta por mulheres de diferentes etnias, classes sociais, regiões do país, religiões, idades, orientações sexuais e identidades de gênero. Acima de nossas diferenças, que apenas enriquecem nossa troca e nossa luta, está a violência de gênero. É ela que nos une e é contra ela que lutamos. Nos articulamos e atuamos politicamente com a finalidade de colaborar na construção de um mundo em que haja justiça para as mulheres.

Na coletiva atuam exclusivamente mulheres, pois queremos criar um espaço seguro para que as mulheres tenham voz e poder de decisão, sendo protagonistas na construção de sua luta, onde haja empoderamento feminino e se amplie a capacidade de atuação das integrantes.

Temos por objetivos a organização anual da Marcha das Vadias na capital paulista, a ampliação do debate sobre as demandas feministas, a defesa da autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas vidas, o incentivo às denúncias de violências contra as mulheres e o fim da impunidade dos agressores.

Assim como lutamos contra o heteropatriarcado e o sexismo, combatemos também o capitalismo, o racismo, a transfobia, a lesbofobia, a bifobia, a homofobia, a gordofobia e outras formas de opressão que recaem sobre grupos humanos marginalizados, pois acreditamos que as demandas feministas são inseparáveis de outras lutas igualmente importantes na construção de um mundo justo.

 

NOSSO ESPAÇO DE ARTICULAÇÃO E LUTA

 

Ocupamos as ruas todos os anos em marcha por acreditarmos que é preciso pautar politicamente a violência a que nós mulheres sobrevivemos cotidianamente, que muitas vezes é vista como um assunto privado. A marcha é um momento de catarse coletiva, em que as mulheres se sentem unidas em prol de um objetivo comum, empoderadas e seguras para tomar as mesmas ruas em que cotidianamente sofrem os mais diversos tipos de violência. Marchamos porque é preciso expôr nossa indignação e demonstrar nossa força.

Incentivamos a participação política das mulheres ao convidá-las a expor suas experiências pessoais, que se refletem nos cartazes em primeira pessoa, no microfone vivo (ação em que uma pessoa fala e a multidão repete frase a frase), na construção do manifesto vivo (momento de microfone aberto a qualquer pessoa que queira denunciar violências) e na pluralidade que se observa no ato de rua. Essa é uma forma de aproximar o feminismo das mulheres.

Acreditamos na importância de promover a mudança social através da cultura e da expressão individual, pelo questionamento dos valores sociais dominantes, com o objetivo de transformar as relações interpessoais ao construir e sedimentar novos valores, que incluam o respeito às mulheres e o seu reconhecimento de fato como cidadãs. Para isso, procuramos divulgar o feminismo ao maior número de pessoas possível, dialogar sobre a violência, expôr a cultura do estupro e tornar públicas visões alternativas de mundo.

Nosso foco são as mulheres, com quem procuramos manter um diálogo direto, tornando o feminismo acessível ao demonstrar como suas ideias têm sentido e permeiam o cotidiano de todas nós.

 

NOSSOS PRINCÍPIOS

 

Somos mulheres e compartilhamos princípios políticos e éticos, que orientam nossa forma de pensar e agir:

 

– Que a roupa ou o comportamento sexual de uma mulher nunca seja usado como desculpa para proteger o agressor e justificar a violência;

– Que a sobrevivente nunca seja apontada como culpada pela violência à qual sobreviveu;

– Que a sociedade entenda que só o agressor é culpado pela agressão;

– Que a palavra da sobrevivente de violência de gênero nunca seja questionada;

– Que a luta coletiva das mulheres contribua para o seu empoderamento, protagonismo e autonomia;

– Que o feminismo seja mais forte que o machismo;

– Que a autonomia de todas mulheres sobre seus corpos e suas vidas seja uma realidade;

– Que a cultura feminista seja capaz de eliminar o machismo da sociedade;

– Que a coletiva mantenha sua independência, não compactuando com pessoas e organizações políticas, econômicas e religiosas que violem os direitos das mulheres.

Feminismo

O feminismo é nosso discurso e também nossa prática. Baseadas nessa filosofia que define nossa visão de mundo, acreditamos que a sororidade transforma a nós mesmas e, assim, nos torna capazes de tentar influenciar positivamente os outros ao nosso redor. Como filosofia e prática política de defesa da igualdade entre mulheres e homens, o feminismo é a base de nossa atuação.

 

Autonomia das mulheres

Um dos impedimentos à libertação das mulheres dos mais diversos tipos de violência é a disseminação da visão dela como objeto e não como sujeito. A mulher ainda é vista como um ser mais frágil e menos capaz de dirigir sua própria vida e isso se reflete no modo como é tratada: feito propriedade a ser protegida (e, para tanto, se preciso, ter a sua liberdade e seus direitos restritos ou suprimidos) por homens, por exemplo o pai, o irmão, o namorado, o marido. Lutamos pelo fim dessa subordinação e pela autonomia das mulheres sobre seus corpos e todos os aspectos de sua vida. A mulher é capaz e deve ter o direito de fazer suas próprias escolhas e agir de acordo com suas necessidades e consciência.

Somos favoráveis a todas as formas de expressão da autonomia das mulheres sobre suas vidas e seus corpos. As mulheres devem ter o direito a usar as roupas que desejarem, sem por isso serem molestadas. Devem ter o direito de se comportar sexualmente da maneira que desejarem, sem que isso as faça cair nas armadilhas do julgamento machista. As mulheres não devem ser julgadas por sua aparência, seja porque fogem aos padrões de beleza socialmente impostos, seja por procurarem se adequar a eles. As mulheres devem ter o direito de decidir o tipo de trabalho que pretendem desenvolver ao longo de suas vidas, com dignidade, segurança e com remuneração igual à dos homens. As mulheres devem ter direito a interromper uma gravidez indesejada, de modo que o procedimento seja acessível, seguro e gratuito.

 

Defesa da palavra da sobrevivente

Está no imaginário social a ideia de que as mulheres são insolentes, mentirosas, manipuladoras. Sua palavra, diante da palavra de um homem, é tida como de menor valor e menos confiável. Diante de uma acusação de agressão, portanto, não é diferente. Desde amigos e familiares até autoridades policiais e judiciárias, em geral as pessoas tendem a desacreditar a denúncia de violência de gênero feita pela mulher.

A mulher que sobrevive a um caso ou situação de violência não deve ser mais uma vez humilhada, tendo sua palavra colocada em dúvida. Por isso, nosso papel é acreditar em sua palavra, acolhê-la, ajudá-la a sair da situação de violência e denunciar quem a agrediu, se assim for sua vontade, sempre com respeito à sua autonomia.

 

Não-culpabilização da vítima

A mulher sobrevivente de violência tem grandes chances de sofrer um outro tipo de agressão: as pessoas tendem a responsabilizá-la de alguma maneira pela agressão sofrida. Seja apontando o tipo de vestimenta utilizado, a quantidade de álcool ingerido ou o tipo de relação estabelecida com a pessoa que a agrediu. Defendemos que em hipótese alguma a mulher deve ser culpada por qualquer tipo de violência que sofra. Essa ideia advém da cultura do estupro e dificulta a resistência, a denúncia e o combate à violência pelas mulheres. A única pessoa que pode ser culpada por uma violência é quem a comete, e somente ela deve ser responsabilizada e punida. Culpar a sobrevivente é violentá-la mais uma vez, e isso é absolutamente inaceitável.

 

Empoderamento das mulheres

Toda mulher está sujeita a sofrer algum tipo de violência de gênero apenas por ser mulher. Nem toda violência, no entanto, é imediatamente reconhecida como tal por quem a sofre. Acreditamos que é preciso que as mulheres se empoderem para saber reconhecer e resistir às violências a elas infligidas. Por isso, nosso foco é o empoderamento das mulheres, para que não caiam ou não permaneçam em situações de violência. Devemos atuar no incentivo responsável de denúncias, conhecendo as leis e a realidade dos serviços e dos fluxos de atendimento à mulher sobrevivente. O empoderamento se dá pelo conhecimento dos direitos, pela prática da sororidade, pela formação de redes de apoio mútuo, pela resistência, quebra do silêncio e denúncia da violência.

 

Glossário:

cultura do estupro – uma série de ideias e comportamentos estabelecidos culturalmente que, se não incentivam a prática do estupro, fazem com que a agressão aconteça de forma naturalizada e até de forma a não ser percebida ou reconhecida como estupro. A cultura do estupro permeia e atua de forma transversal na sociedade e, portanto, o combate a esse pensamento deve unir mulheres de todas as etnias, religiões, orientações sexuais, identidades de gênero e classes sociais.

empoderamento – ações que fortalecem a mulher, sua autoestima, fazendo com que ela se sinta mais fortalecida para se impor socialmente, defendendo seus direitos e sua dignidade.

estupro – qualquer ato sexual sem consentimento. Pode ocorrer mediante agressão física ou psicológica, chantagem (seja envolvendo elementos emocionais, financeiros ou de qualquer tipo), ameaça ou em uma situação em que a pessoa não está em condições (sejam físicas ou psicológicas) de consentir ou se negar a praticar o ato sexual.

heteropatriarcado – união entre os conceitos de heterossexualidade e patriarcado. A ideia de heterossexualidade como única forma possível e aceita de comportamento sexual dos indivíduos é excludente e aprisionadora, criando a heteronormatividade. A doutrina heteronormativa define padrões de comportamento para homens e mulheres. Assim, a heterossexualidade se torna uma sexualidade, ou padrão, dominante em detrimento de outras possibilidades de vivência da sexualidade humana: lesbiandade, homossexualidade, bissexualidade, assexualidade e outras.

Já o patriarcado pressupõe a relação autoritária e hierárquica entre homens e mulheres, os primeiros sendo considerados superiores, seja biologica ou culturalmente. Essa relação desigual é devida à atribuição de valores a um determinado papel. Ao masculino se associa a ideia de competitividade, orgulho, coragem, dever de proteger e defender, força, enquanto para o feminino os valores associados são de dependência, fragilidade, tranquilidade, romance, doçura e sentimentalidade, consumismo. Assim, a heteronormatividade e o patriarcado são baseados em papéis de gênero, que funcionam como atos repressivos para a nossa liberdade individual e social.

mulher – toda pessoa que se identifique com essa identidade de gênero. A categoria envolve, portanto, uma ampla variedade de pessoas, cuja diversidade reflete a imensa pluralidade que compõe nossa sociedade – em que as pessoas se diferenciam e se identificam por sua classe social, cor, etnia, identidade de gênero, orientação sexual, religião, crenças, geração, deficiências. Buscamos construir um feminismo que considere essa pluralidade, procurando lutar pelas demandas dos diversos grupos de pessoas que se identificam como mulheres.

sobrevivente – aquela que sobreviveu à violência de gênero – preferimos sobrevivente a vítima por acreditar que a palavra vítima impõe novo sofrimento e estigmatiza a mulher, enquanto a palavras sobrevivente empodera. Valoriza sua força e capacidade de superação.

sexismo – incapacidade ou recusa de reconhecer os direitos, as necessidades, a dignidade ou o valor de pessoas de um certo sexo ou gênero. Em geral é usada como forma de rebaixar apenas o gênero feminino.

sororidade – empatia, união, solidariedade, lealdade e identificação entre mulheres

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