Nossos corpos nos pertencem

 

Texto por Priscila Bernardes

 

Em tempos de “pós-feminismo”, fica cada vez mais claro o quanto os problemas mais clássicos do feminismo não foram ainda solucionados. Um deles, o do acesso aos direitos reprodutivos, é tema de uma manifestação que está sendo chamada pelas redes e que vai acontecer onde elas falam mais alto: nas ruas. No próximo dia 24, a partir das 13h, diversas pessoas vão se encontrar no vão do Masp para sair em marcha pela autonomia de mulheres e homens sobre seus corpos e pelo respeito aos seus direitos reprodutivos.

 

Mas, afinal, o que são direitos reprodutivos?

 

Segundo o texto aprovado pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, são direitos que “se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”.

 

A Marcha das Vadias de São Paulo (SP) apoia toda iniciativa de luta pelo reconhecimento e respeito aos direitos reprodutivos e convida todxs a participar desse ato tão importante neste momento de ascensão de uma forte onda conservadora no país.

 

O conservadorismo tem ganhado cada vez mais espaço no plano social, especialmente no campo político. A despeito da laicidade do Estado, as instituições políticas brasileiras, principalmente do poder legislativo, estão sendo tomadas por representantes de denominações religiosas que não abrem mão de seus preceitos morais ao atuar politicamente, impondo derrotas aos movimentos sociais, particularmente os feministas e LGBT. As eleições têm sido momentos em que essas práticas ficam ainda mais evidentes. Para ficar em exemplos mais recentes, podemos citar a transformação das eleições presidenciais de 2010 em disputa pelo posto de maior anti-aborto e o abandono da ideia de implantar a política de redução de danos do aborto inseguro para garantir alianças nas eleições municipais de 2012.

 

Charge de Carlos Latuff, por ocasião do uso da questão do aborto como arma política nas eleições presidenciais de 2010.

 

Vou me ater a esses exemplos, pois demonstram como a saúde e a vida das mulheres são leiloadas em troca de apoio político e votos. Isso não é exagero. Nos países em que o aborto é crime, ele é também uma das principais causas evitáveis de morte materna. E não se trata apenas de mortes, mas também de sequelas à saúde das mulheres. Segundo o gerente de Saúde Familiar e Ciclo de Vida da Organização Pan-Americana da Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OMS), Rodolfo Ponce de León, enquanto a taxa latino-americana e caribenha de mortalidade materna por aborto é de 75 para cada 100 mil nascidos vivos, a taxa de morbidade, ou seja, de casos de sequelas à saúde em decorrência de aborto, é de 1.500 a cada 100 mil, ou seja, é vinte vezes maior.

 

Esses números, que na verdade representam a realidade vivida por pessoas de carne e osso, poderiam ser drasticamente reduzidos se a saúde das mulheres fosse de fato valorizada e a legalização do aborto se tornasse realidade nesses países. Segundo León, o efeito da proibição do aborto sobre o aumento da mortalidade materna é direto. A taxa de mortes maternas cai bruscamente sempre que a prática é legalizada. Quando acompanhada por políticas de educação sexual e planejamento familiar, a legalização leva inclusive à diminuição do número de abortos realizados, como foi verificado na Suíça.

 

Porém, em um quadro de grande dificuldade para a legalização do aborto, como é o caso do Brasil, a política de redução de danos é uma alternativa eficaz para diminuir a mortalidade materna. A política prevê medidas de acompanhamento e orientação por agentes do sistema público de saúde antes e depois da realização do aborto clandestino. Compõe-se de aconselhamento sobre alternativas, métodos e riscos do aborto, atendimento psicológico e social, entrega de medicamentos antibióticos para prevenir infecções e, por fim, cuidados pós-operatórios humanizados, em caso de complicações posteriores ao aborto.

 

A política de redução de danos causados pelo aborto inseguro foi implantada com amplo sucesso no Uruguai e, por isso, a OMS sugeriu ao Brasil que a adotasse. Em 2004, quando a medida foi adotada pelo país vizinho, a taxa de mortalidade materna era de 70 mortes para cada 100 mil nascidos vivos. No ano seguinte, a taxa já era menor que 10 por 100 mil. A partir de 2008, o país não registrou mais nenhuma morte materna decorrente de aborto.

 

Charge de Rafael Balbueno, 2012. Segundo dados do Ministério da Saúde, o risco de morte por aborto inseguro é 1,6 vezes maior entre mulheres do Norte do que entre as do Sudeste, 2,5 vezes maior entre mulheres pretas do que entre as brancas e 5,5 vezes maior entre analfabetas do que entre as que têm 12 ou mais anos de estudo.

 

 

Passadas as eleições municipais brasileiras, o assunto promete vir à tona novamente. É preciso estar preparada para o debate e para reagir à ação de grupos conservadores. Há muito a fazer num país em que até mesmo o aborto legal é por vezes negado a quem tem direito e no qual mulheres com complicações causadas por abortos inseguros são denunciadas por quem deveria manter o sigilo profissional e zelar por seu bem-estar.

 

Por isso reforçamos o convite para marchar no próximo dia 24 por nossa autonomia. Devemos ter o direito de escolher se, como e quando teremos filhos. Nossos corpos nos pertencem e não permitiremos que eles continuem sendo campos de batalha!

 

Vídeos sobre aborto:

Vai pensando aí…

O Aborto dos Outros

 

Cartilhas sobre aborto legal:

Anis – Aspectos éticos do atendimento ao aborto legal

CFemea – Vamos conversar sobre aborto? Conheça e defenda seus direitos!

 

Organizações feministas com foco em direitos reprodutivos:

Ações Afirmativas em Direitos e Saúde/Ipas

Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

Católicas pelo Direito de Decidir

Rede Feminista de Saúde

 

 

* Os direitos reprodutivos, como expressa a definição da Conferência do Cairo, não se restringem ao direito à escolha pela manutenção ou não de uma gravidez indesejada, porém considero que este é um de seus aspectos mais urgentes devido à morbidade e mortalidade causadas pela proibição da interrupção voluntária de gravidez e pela consequente ampliação de casos de abortos inseguros. Isso explica o enfoque do texto.